sexta-feira, 2 de abril de 2010

Toca de ler esta merda, e toca de ler esta merda já

E quando digo já, quero dizer agora mesmo do princípio ao fim.

Imposturas Intelectuais, de Alan Sokal e Jean Bricmont. Trad. de Nuno Crato e Carlos Veloso. Lisboa: Gradiva, 1999, 298 pp.

Em 1996 Sokal escreveu um artigo para a revista Social Text com o título «Transgredir as fronteiras: em direcção a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica». Este artigo era uma paródia construída à volta de citações de autores franceses bastante conceituados. Nele, Sokal defende uma série de ideias disparatadas acerca das implicações filosóficas e sociais das ciências naturais e da matemática. Entre os autores citados nesse artigo estão Gilles Delleuze, Jacques Derrida, Félix Guatarri, Luce Irigaray, Jacques Lacan, Bruno Latour, Jean-François Lyotard, Michel Serres e Paul Virilio. A revista Social Text não só aceitou publicar o artigo de Sokal, como o incluiu numa edição especial sobre as implicações sociais e filosóficas da ciência. Este acontecimento ficou conhecido como o «embuste de Sokal» (a descrição do embuste foi feita por Paul Boghossian e publicada no n.o 2 da Disputatio).

O embuste provocou todo o tipo de reacções. Uma das reacções mais comuns, assumida pelos simpatizantes dos autores parodiados, foi a de que o embuste não provava nada acerca do «pós-modernismo» em geral — provava só que aquela revista e aqueles directores tinham sido pouco cuidadosos na selecção dos textos. O livro Imposturas Intelectuais tem como principal objectivo mostrar que a publicação do artigo de Sokal não foi apenas um descuido, mas antes uma consequência das excentricidades do dito «pós-modernismo». Neste livro, Sokal e Bricmont propõem-se mostrar como pelo menos oito dos mais conceituados autores franceses abusam de conceitos e termos provenientes das ciências físicas e da matemática de tal forma que a sua honestidade intelectual pode ser posta em causa. Os autores que merecem capítulos separados são Jacques Lacan (cap. 1), Julia Kristeva (cap. 2), Luce Irigaray (cap. 4), Bruno Latour (cap. 5), Jean Baudrillard (cap. 7), Paul Virilio (cap. 9), Gilles Delleuze e Félix Guattari (cap. 8). Embora estes autores não se auto-apelidem de «pós-modernos», os seus textos são, em geral, considerados como uma espécie de bíblias sobre as quais é construído o discurso «pós-moderno». Assim sendo, o facto de estes autores abusarem de termos e conceitos técnicos das ciências físicas e da matemática para defenderem certas teses filosóficas e políticas pode, pelo menos, lançar algumas suspeitas sobre a honestidade intelectual da corrente «pós-moderna».

Sokal e Bricmont propõem-se provar quatro acusações acerca dos autores citados. Como Sokal e Bricmont são ambos professores de física estas acusações limitam-se a apontar as incorrecções na utilização de conceitos científicos. As acusações são as seguintes:

1. Os autores usam uma terminologia científica sem saberem bem o que ela significa.

2. Os autores importam noções das ciências exactas sem darem a mínima justificação empírica ou conceptual para essa importação.
3. Os autores exibem uma erudição superficial atirando sem pudor palavras com-plicadas à cara do leitor em contextos em que essas palavras não têm qual-quer pertinência A finalidade é provavelmente a de impressionar e intimidar o leitor que não tem conhecimentos científicos.

4. Os autores manipulam frases sem sentido e usam indiscriminadamente jogos de palavras provocando uma verdadeira intoxicação verbal combinada com uma indiferença soberba pelo significado que essas palavras possam ter.

Em suma, Sokal e Bricmont propõem-se desconstruir a reputação que estes textos têm de que são difíceis porque são profundos. Afinal, se muitas vezes eles parecem incompreensíveis talvez seja porque não dizem real-mente nada.

Esta acusação é dolorosamente provada através da citação e análise de blocos de textos dos autores citados. Nestes textos são usadas ideias das ciências físicas e da matemática que os autores ou não compreendem, ou distorcem, com a finalidade de defenderem determinadas teorias filosóficas. Entre os temas científicos favoritos destes autores encontramos a mecânica quântica, a teoria do caos e o teorema de Gödel (estas teorias são explica-das nos caps. 6 e 10). As teses filosóficas, supostamente se seguem da «nova ciência» são sempre uma ou outra forma confusa de «relativismo». Sokal e Bricmont provam claramente pelo menos duas ideias: estes autores não compreendem as teorias científicas e os resultados matemáticos a que se referem e tentam retirar das ciências resultados filosóficos e políticos que não se seguem delas.

Para além desta tarefa exaustiva de desconstrução dos textos dos intelectuais franceses, Sokal e Bricmont também têm alguns comentários interessantes a fazer às teses menos disparatadas da epistemologia contemporânea (cap. 3). A ideia central é a de que há uma crise geral na epistemologia contemporânea do século XX. Esta crise tem essencialmente duas origens: por um lado, posições como as de Popper, de Lakatos e do Círculo de Viena, que defenderam uma codificação da investigação científica fazendo dela uma actividade demasiado específica e rigorosa, demasiado separa-da das outras actividades racionais comuns; por outro lado, as reacções a essas tentativas, representadas no livro através das teses de Kuhn e Feyerabend, deram origem a um cepticismo irrazoável.

A concepção da ciência como determinada por uma série de regras definidas não é coerente com a realidade da investigação científica. Mesmo a proposta falibilista de Popper, segundo a qual as teorias científicas não podem ser confirmadas mas podem ser falsificadas, tem dificuldades práticas óbvias — o trabalho central dos cientistas não é o de tentarem exaustiva-mente encontrar contra-exemplos para as suas teorias e, de facto, não seria razoável abandonar uma teoria bem sucedida por ela falhar uma previsão. Em geral, a tentativa de colocar as ciências exactas numa posição total-mente diferente das outras actividades racionais humanas dá origem a uma série de distorções com consequências bastante perniciosas.

Autores como Kuhn e Feyerabend reagiram a esta tentativa sublinhando as diferenças entre a realidade da investigação científica e as idealizações expressas por Popper. Segundo Kuhn, grande parte da actividade científica, a «ciência normal», desenvolve-se no interior de certos «paradigmas». Esses paradigmas definem o género de problemas a serem estudados, os critérios através dos quais uma solução pode ser avaliada e os procedimentos considerados aceitáveis. De tempos a tempos a dita «ciência normal» entra em crise e assistimos a uma mudança de paradigma. Os exemplos comuns são a ruptura de Galileu e Newton com a física aristotélica ou a ruptura entre a teoria da relatividade e da mecânica quântica em relação à mecânica clássi-ca.

Sokal e Bricmont aceitam que esta é uma representação razoável da história da ciência e da sua evolução. O problema com a posição de Kuhn só surge quando aparece a ideia da «incomensurabilidade» dos paradigmas. Embora os estudiosos de Kuhn se entretenham a discutir os vários sentidos da palavra «incomensurabilidade» (e também da palavra «paradigma») pelo menos um desses sentidos possíveis é a ideia de que não é possível fazerem-se comparações racionais entre as teorias concorrentes. Isto acontece porque a noção que nós temos do mundo depende e é condicionada de uma forma radical pelas teorias que, por sua vez, dependem do paradigma em vigor. Mas, a dita «incomensurabilidade» das teorias não se segue do quadro histórico traçado sobre a evolução da ciência. Os paradigmas não se abandonam por motivos irracionais. Claro que muitas vezes existem uma mistura de boas e más razões nas mudanças de paradigma, mas isso não significa que as más razões sejam as dominantes.

Assim, para defender a ideia de que os paradigmas se alteram por motivos essencialmente irracionais é necessário algo mais do que a descrição histórica da evolução das ciências proposta por Kuhn. Em particular, é necessária uma tese que defenda que os paradigmas das ciências exactas são escolhidos de uma forma irracional. Mas esta tese histórica não pode, por sua vez, ser avaliada. Se as ciências exactas são desenvolvidas através de métodos irracionais o que é que nos garante que as ciências históricas estejam em melhor posição? Se alguma ciência pode ser racional, o melhor candidato são as ciências exactas. Isto acontece não porque os físicos sejam mais inteligentes que os historiadores, mas porque os problemas que os físicos estudam são, em geral, menos complexos, têm menos variáveis, são mais fáceis de medir e controlar. Se mesmo nestas condições as ciências físicas não conseguem deixar de ser irracionais, então por certo também as ciências históricas serão irracionais. Mas, se assim for, a tese histórica de que a mudança de paradigmas tem motivações irracionais é, também ela, irracional. Este argumento é decisivo. Ele mostra que a tese de que a mudança de paradigmas é essencialmente irracional não é sustentável — refuta-se a si mesma. Mas, se a tese de Kuhn for apenas que nem todos os motivos para a mudança de paradigma são racionais, então a dita «incomensurabilidade» das teorias não se segue.

Outra posição analisada é a de Paul Feyerabend. Aqui, de novo, Sokal e Bricmont estão de acordo com as linhas gerais das teses de Feyerabend sobre o método científico. A ideia de que a ciência pode ser organizada segundo regras fixas e universais é utópica e prejudicial. No entanto, da rejeição dessa ideia não se segue que em ciência «vale tudo» (anything goes). À primeira vista, Feyerabend parece simplesmente ignorar a distinção clássica entre contexto da descoberta e contexto da justificação. De facto, nos processos de investigação científica todos os meios são admissíveis. O cientista pode até chegar às suas hipóteses através de alucinações ou sonhos. No entanto, a justificação das teorias deve ser racional, mesmo que essa racionalidade não possa ser codificada de uma forma definitiva. Os exemplos extremos apresentados por Feyerabend são todos em relação ao contexto da descoberta. Mas o problema com as propostas de Feyerabend está no facto de ele negar a validade da distinção entre contexto da descoberta e contexto da justificação. Sokal e Bricmont concordam que a distinção entre estes contextos é exagerada na epistemologia tradicional. No entanto, daqui não se segue que não exista qualquer distinção.

Em suma, a epistemologia tradicional, ao tentar traçar uma linha entre as ciências exactas e as outras actividades racionais humanas, idealizou as ciências exactas criando delas uma imagem insustentável. Como reacção, surgiram epistemologias que pretendiam mostrar a ciência tal como ela é na realidade da investigação científica e, por comparação com as idealizações da epistemologia tradicional, esta descrição parecia apontar métodos quase irracionais. A proposta de Sokal e Bricmont é a de que existe apenas uma racionalidade humana e ela encontra-se em todas as áreas de investigação que pretendem dizer algo acerca do mundo. As ciências exactas são mais bem sucedidas porque os seus objectos de estudo são, em geral, mais simples e mais controláveis. As ciências humanas têm objectos mais complexos, mas não são radicalmente diferentes das ciências exactas, pelo menos no que diz respeito a requisitos mínimos de racionalidade.

Por último, Sokal e Bricmont tentam clarificar o carácter político das posturas ditas pós-modernas (cap. 12). A tese filosófica favorita do pós-modernismo costuma ser uma ou outra forma vaga de relativismo. O relativismo é normalmente considerado como sendo defendido por certas correntes «de esquerda». Os «advogados da ciência» são muitas vezes considerados como sendo «de direita». Assim, a por vezes chamada «guerra das ciências» é frequentemente vista como um conflito político entre progressistas e conservadores. Mas esta situação não é assim tão linear. Como Sokal e Bricmont sublinham, existe uma longa tradição anti-racionalista nas correntes políticas de direita. A esquerda, por sua vez, tem uma longa tradição de parceria com a ciência na luta contra o obscurantismo. O que é curioso no fenómeno dito «pós-moderno» é precisamente a ideia de um anti-racionalismo de esquerda.

Na origem deste novo anti-racionalismo estão, segundo Sokal e Bricmont, vários factores diferentes. Por um lado, apareceram novos movimentos sociais, como as associações anti-racistas, feministas e homossexuais, que abraçaram as filosofias pós-modernas como base para as suas teses (por exemplo, as «filosofias da diferença»). Por outro lado, a ciência tem sido vista como uma instituição social ligada ao poder económico e militar e assume muitas vezes um papel odioso. As tecnologias, por sua vez, também têm uma série de efeitos desastrosos. Este tipo de motivos levaram muitas pessoas a associarem-se ao relativismo (confundindo relativismo com pluralismo) e a tomarem uma posição adversa em relação à ciência. Infelizmente, estas posições não acertam no alvo que as motiva. Em vez de apontarem o que há de pior na ciência, atacam o que há de melhor — o facto de ser uma tentativa racional de compreensão o mundo. Em vez de abraçarem filosofias tolerantes e pluralistas e desmistificadoras dos discursos dominantes acabam apenas por aumentar o número de mistificações existentes.

Por fim, as consequências das tendências «pós-modernistas» no meio académico são claramente desastrosas. A desonestidade intelectual de alguns dos autores pós-modernos revela-se, por exemplo, no facto de utilizarem um certo tipo de ambiguidade para se resguardarem da crítica. Sokal e Bricmont mostram como os textos dos pós-modernos são ambíguos na medida em que podem quase sempre ser interpretados de duas maneiras: ou como afirmações verdadeiras, mas relativamente banais, ou como afirmações radicais, mas manifestamente falsas. Estas ambiguidades parecem ser deliberadas num grande número de casos e têm algumas vantagens para aqueles que as utilizam. As interpretações radicais servem para cativar os leitores pouco experientes e, se alguém põe a claro o absurdo destas interpretações, os autores podem sempre responder que foram mal compreendidos, defendendo-se de novo com a interpretação banal. Esta táctica é infelizmente bastante comum no dito «pós-modernismo».

O embuste de Sokal foi recebido com entusiasmo por aqueles que (como eu) «estão, pura e simplesmente, irritados com a arrogância pós-moderna, com a verbosidade crua e com a existência de uma comunidade intelectual na qual todos repetem frases que ninguém compreende» (p. 203). O artigo que deu origem ao embuste está incorporado no primeiro apêndice, acompanhado de um segundo onde se indicam todas as incorrecções e disparates que nele aparecem. Imposturas Intelectuais mostra de uma forma sistemática como a «arrogância pós-moderna» abusa de conceitos das ciências exactas para defender teses filosóficas duvidosas. O embuste de Sokal e o livro a que deu origem devem ser suficientes para pelo menos lançar algumas suspeitas sobre as posturas ditas pós-modernas.

Sara Farmhouse Bizarro

Department of Philosophy

King’s College London

Strand, London WC2R 2LS

England

sara.bizarro@kcl.ac.uk

Vejam lá se adivinham quem vai comprar?

Esta parte em particular fez-me lembrar um outro pensador intelectual que também se deleita em chocar e ser diferente: "Sokal e Bricmont mostram como os textos dos pós-modernos são ambíguos na medida em que podem quase sempre ser interpretados de duas maneiras: ou como afirmações verdadeiras, mas relativamente banais, ou como afirmações radicais, mas manifestamente falsas". Mas no caso do John Gray ele ao menos não se socorre de ambiguidades. É bastante directo na merda que diz, só tenho é pena que seja merda: ou é algo banal e de conhecimento geral (mas proclamado com uma grandiosidade que até dá medo), ou então é simplesmente falso.
Nota-se muito que andei a ler John Gray recentemente e estou irritado com as habituais merdas dele?...

Aqui.

Para quem tem curiosidade aqui fica o livro de que se fala:
Intellectual Impostures

O livro do Kuhn:
The Structure of Scientific Revolutions

E o livro do Feyerabend:
Against Method

2 comments:

garibaldov disse...

Sokal é neste momento o meu herói. Que a epistemologia estava em cacos já eu sabia. Só não sabia era se alguém estava a fazer um trabalho que visava demonstrar isso.

O John Gray também odeia os pós-modernistas. Mas eu já sei porque é que andas a bater nele. É que ele andou a dizer mal dos anarquistas :P

Mas já viste o Glory ou não? Não me respondeste da outra vez.

ateixeira disse...

Ahah! O problema não é falar mal, o problema é dizer merda que não corresponde à realidade. Isso é que é chato.

Vou ver o filme hoje à noite. E para a semana devolvo-te. A sério!

Quanto ao Sokal: convém também ler a resposta dos pós-modernos ao trabalho dele.